Arte na pesquisa etnográfica e intersubjetividade

Gonçalo Salvaterra


Quando desenho estou a refletir. Não há dúvida. Acabado o desenho, mostro-o aos meus interlocutores e daí pode advir ou não uma discussão. Após uma discussão sobre um determinado desenho, ele passa inevitavelmente a possuir cumulativamente as características da minha reflexão, bem como a dos meus interlocutores. 

 O desenho pode contar uma estória. Este desenho definitivamente conta uma. Foi feito após um dia de lavoura. Na alvorada, eu e o meu assistente de terreno Mamadu pegámos das bicicletas e pedalámos cerca de 4 km até um terreno de um amigo. Tínhamos combinado no dia anterior ir ajudar a lavrar arroz. Após 3 horas tínhamos lavrado 7 quilos de arroz. Para muitos isto não quer dizer rigorosamente nada. Para mim também não, isto até o fazer claro. Depois de o fazer, sei que sete quilos de arroz lavrado, significa suor e canseira. Cheguei a casa, cansado e após lavar o corpo peguei num caderno de aguarelas e pintei um corpo a lavrar arroz. Provavelmente para todos, à exceção de mim, esta figura em nada indica ser um homem de kobadur (enxada com cabo curto)  na mão lavrando arroz. Enquanto pintava, deixei-me levar pelo descanso. Pintei para relaxar, abstrair-me do cansaço e da dor da pele queimada pelo sol. 

As cores que foram usadas de forma muito espontânea não obedeciam a nenhuma lógica que não critérios estéticos e práticos. O castanho foi pintado com o café que acompanhou o processo na tentativa de ganhar alguma energia. O preto e o azul porque o momento assim o ditou. Após acabar, analisei o desenho.

Ao castanho atribui o seu significado à terra rasgada pelo kubadur que levanta tanta poeira que nos deixa os braços castanhos. Depois havia ainda o azul. Porquê azul? Pela chuva, o arroz precisa da chuva para nascer. Chuva essa que segundo os meus interlucutores, cada vez é mais incerta e mal distribuída pela estação das chuvas, prejudicando o rendimento das colheitas.

Comecei a aprender sobre o arroz pelo fazer antes do conhecimento contado pelos meus interlocutores, e comecei a refletir também pelo fazer. Aqui o desenho toca dois modos de fazer, o corpo ensinou-me que a lavoura cansa muito. E os meus interlocutores ensinaram o meu corpo a estar na lavoura. O meu corpo cansado produziu este desenho, e pelo fazer refleti sobre o que aprendera. Michael Taussig numa das diferenciações que faz entre fotografia e desenho é precisamente o tirar (taking) uma fotografia e o fazer (making) um desenho (2011:21).

Enquanto fazia o desenho, fui observado atentamente pelo Mamadu, meu assistente e anfitrião, uma vez que era na sua casa que vivia. Quando acabei, o Mamadu retorquiu, Gonçalo tu não és fácil. Perguntei-lhe porquê e o Mamadu disse-me que podia colocar dinheiro em cima da mesa que ninguém da aldeia ia fazer algo parecido. Fiquei agradavelmente contente por ele apreciar o meu desenho. Mas depois perguntou-me o que representava o desenho. Com essa pergunta e conversa que se sucedeu exploraramos os atributos visuais da imagem que não representava objetivamente a lavoura, até porque o kobadur não é visível. Dessa discussão resultou o cruzamento da minha reflexão em torno do cultivo do arroz com o conhecimento empírico da vida do Mamadu. Abordámos os variados tipos de arroz que podem ser cultivados no Boé, as pragas que afetam o rendimento do arroz e tantos outros assuntos.

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Durante as muitas conversas que tive com Mamadu, a casa era tema constante de conversa. Quando cheguei pela primeira vez ao Boé, a casa de Mamadu estava ainda em construção. As paredes erguidas de tijolo manualmente fabricado com recurso a terra e água eram a parte visível de um processo que começara muito tempo antes. A maior preocupação do Mamadu naquele tempo era a casa. Quando discutíamos os preços da campanha do caju, a casa era novamente resgatada para a conversa. O preço baixo do caju, juntamente com um ano pouco produtivo disparou os problemas da maioria das famílias guineenses. Falando-se inclusivamente na possibilidade de nos meses de Agosto e Setembro poderem ser meses de carência de arroz. Para o Mamadu o problema era claro, a campanha de comercialização de caju estava atrasada. Os comerciantes ainda não tinham aparecido e as previsões apontavam uma descida grande no preço. Sem uma boa campanha a casa não ficaria pronta a tempo de enfrentar o tempo das chuvas. A casa conseguiria resistir às primeiras chuvas, mas as chuvas de fim de Julho já seriam problemáticas e poderiam resultar no desabamento das paredes edificadas. Contudo a campanha que tardara em chegar finalmente arrancou e o rendimento do caju permitiu comprar Cibe (rachas retiradas do tronco da palmeira cibe Borassus aethiopum) para fazer a estrutura do telhado e folhas de zinco para cobrir a maioria de do telhado. 

A casa é um aspeto central da vida em todas as sociedades. Ela providencia abrigo, e é nela que grande parte da esfera doméstica da vida se concentra. A construção de uma casa diz muito sobre as condições materiais de existência e o seu meio ambiente circundante. Nesta peça está representada a casa e foi pensada e executada entre mim e o Mamadu. O nome da peça, escolhido pelo Amadu é Bismillah (árabe, em nome de deus, o clemente, o misericordioso). Os materiais que compõem esta escultura são alguns dos materiais usados na construção da casa. Estão nela, duas casas, a antiga e a presente. Ambas representadas pelo cibe. O cibe escuro indica que é velho. Remonta a 1989 ano da construção da antiga casa e o cibe claro cortado este ano para a construção da actual casa. O zinco é o telhado. Esta assemblagem de  materiais de construção, onde se incluem as cordas retiradas de três espécies de árvore distintas que amarram o cibe ao zinco, permitiu navegar pelos sistemas de significados em torno da casa. Constituindo-se desta forma como uma metodologia de investigação através do fazer.

Os desenhos que se seguem, são alguns exemplos dos que foram produzidos no decorrer da pesquisa etnográfica e todos eles serviram a pesquisa.

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