Hortus Botanicus

Sónia Mota Ribeiro


Em dezembro de 2020 participei num atelier de desenho no Jardim Botânico do Museu Nacional de História Natural, orientado pela ilustradora Sara Simões. Integrei este atelier como desenhadora participante, colocando a ênfase no processo e não no resultado final, com o propósito de imergir numa experiência análoga à do grupo de desenhadores que estudava (Grupo do Risco). Arnd Schneider (2006) nota que a observação de artistas pode ser desafiante, particularmente devido à natureza solitária do seu trabalho, sendo por vezes necessário maior envolvimento:

Whilst one can hang around for some time, for instance, after an interview or after being shown work in the studio, it is less feasible, or almost impossible to be present when artists "work"-unless one is also involved in the process (Schneider 2006: 187).

Às seis participantes, Sara Simões propôs o desafio de desenhar em papel pardo, distribuindo lápis pretos, brancos e folhas de papel. Descemos para o jardim por um caminho enlameado até chegarmos ao lago, onde parámos no meio de árvores gigantes e outras plantas mais pequenas. Chovia miúdo, mas não estava frio e os sons da cidade passaram a ser os de pássaros e insetos a brincar e comer no meio das plantas. A ilustradora disse-nos para passear um pouco e escolher um sítio para ficar a desenhar duas horas. Primeiro obstáculo. Vagueei pelo jardim à procura de algo que chamasse a minha atenção, ou fosse familiar, ou fácil de desenhar, ou desafiante. Estas hipóteses ocorriam-me em simultâneo, mas finalmente, sem perceber porquê, fiquei junto ao lago e apresentei-me a uma árvore de ramificação confusa, careca e salpicada de pequenas flores brancas.

A experiência começou por ser frustrante, pois já não desenhava há meses, mas Sara Simões emprestou-me uma moldura em papel para selecionar o que queria incluir na minha página, o que ajudou a reduzir significativamente o número de decisões do processo. Comecei por observar a estrutura geral da árvore, depois os seus ramos, como ondulavam e como se entrelaçavam e apoiavam uns nos outros. Fiquei presa na complicação dos galhos e senti que queria perceber todos os seus cruzamentos e confusões e tornar tudo menos complexo. Enquanto percorria a árvore com os olhos e tentava percebê-la no papel, ouvia um zumbido crescente à minha volta, que percebi rapidamente serem abelhas a trabalhar nas flores. Respirei e prossegui. Por vezes tinha que parar e abrigar-me debaixo de árvores mais densas porque a chuva intensificava e podia arruinar o papel. O desenho ficou com algumas marcas.

O que notei sobre esta prática de observação: para fazer o desenho tive que dedicar toda a minha atenção à planta e ao que a rodeava, reconhecendo o espaço que ocupava, a forma como existia nesse espaço e interagia com as outras espécies e comigo. O meu corpo demorou um pouco a adaptar-se à posição de desenho (em pé), à humidade e à companhia das plantas e animais, mas após este breve prelúdio, esqueci-me do desconforto, ocupei o espaço em frente à planta e dei-lhe a minha total atenção. A perceção geral começou a transformar-se em recortes específicos de pormenores, ramos, folhas e flores, e atentei a como a luz modelava cada uma destas partes, permitindo-me vê-las. Sem dar por isso, perdi-me nesta atenção e acho que para mim não existe um meio termo neste processo. Senti que estava a estabelecer uma relação com a planta e, apesar da mão e braço tratarem do registo, todos os meus sentidos ficaram alerta. Voltei ao Jardim em novembro de 2021, quase um ano depois, para visitar a árvore.

[...]

Ao reler as minhas notas deste dia, e depois de ter escrito a primeira parte da dissertação, consigo perceber que o mapa de conceitos e ligações teóricas que fui tecendo deve muito a esta primeira experiência de desenho de observação. O esboço que produzi, apesar de tecnicamente insuficiente, condensa aquele momento e a minha relação com a planta. Consigo perceber que me identifiquei, não antropomorficamente, mas a um nível mais "batesiano", ou seja, ao concentrar-me na planta, estendi o meu self, reconhecendo-me nela e este foi um momento de conhecimento, simultaneamente cognitivo e abstrato. Esta experiência inicial possibilitou ir além do modelo textual, através da implicação na prática, amplificando o meu trabalho antropológico.


Schneider, A. 2006. Appropriation as Practice: Art and Identity in Argentina. New York: Palgrave Macmillan.

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